sábado, 7 de agosto de 2021

Os sonhos da Fadinha

Os sonhos da Fadinha


O problema real do Brasil não é a "tirania do mérito", mas a ausência de uma base de direitos para que o mérito possa fazer a diferença Por Fernando Schüler Atualizado em 5 ago 2021

“Trabalho desde os 14, durmo coisa de cinco horas, minha avó era doméstica e aprendi inglês sozinho”, diz Tallis Gomes, criador do Easy Taxi. “Sou fruto da meritocracia”, e arremata: “Temos de parar de incentivar o coitadismo”. Lembrei da fala do Tallis escutando as histórias de nossos atletas, lá em Tóquio, por estes dias olímpicos. Rebeca Andrade, nossa campeã na ginástica, não deixou por menos: “Dei duro e tive inteligência para aproveitar oportunidades”. A outra Rebecca, do vôlei de praia, sempre lembrada por não ter o biótipo “perfeito” do esporte, lascou: “Vendi o carro e fiz empréstimo para competir. Não foi do nada que a gente apareceu”. São relatos apaixonantes. Eles dizem, de um jeito simples, que o mérito importa. Mérito entendido como um tipo de atitude diante da vida. A capacidade de tomar iniciativa, assumir riscos, evitar a saída fácil de terceirizar responsabilidades e dar a volta por cima quando as coisas não vão bem. A pergunta é: há algum problema com a meritocracia? O tema se tornou algo explosivo nos últimos anos, e basta ir a uma livraria para ver livros aos montes sobre o “mito” , a “armadilha” , a “perversidade” da meritocracia. Esta ideia “falsa, que encoraja o egoísmo e a indiferença com os desafortunados”, como li em um texto dias atrás. Virtudes associadas ao mérito não façam diferença. Michael Sandel trata desse tema em seu livro A Tirania do Mérito. Em geral  concordo com Sandel, mas não desta vez. Ele diz que a ideia de que nosso sucesso depende de nós é uma “visão emocionante da agência humana” , mas que anda lado a lado com uma conclusão tanto confortável quanto equivocada: a ideia de que “recebemos o que merecemos”. Sandel reclama de que Barack Obama e os líderes americanos recentes compraram essa ideia furada. Obama teria usado mais de 140 vezes o mantra “Se você tentar, você consegue” em seus discursos, enaltecendo a ideia da justiça como oportunidade para as pessoas, tão cara ao American Dream. A nossa fadinha do skate, Rayssa Leal, vai em linha com Obama. “Nunca desista dos seus sonhos” , disse ela em uma entrevista, depois daquela incrível medalha. Ela conta que ganhou um skate aos 6 anos e nunca mais o largou. Que teve uma chance, que deu sorte. Os pais deram força, havia uma pista de skate na cidade. Mas a verdade é que nada disso explica o seu sucesso. Há  milhares de decisões que ela mesma tomou, sem ninguém mandar, todos os dias, para chegar até aquele pódio em Tóquio. E mais: não desistir dos sonhos é o conselho que os pais darão aos filhos e treinadores aos atletas. Até mesmo sociedades de mercado, baseadas na igualdade de direitos, remuneram o valor, não o mérito. Ninguém sai de casa pra comprar pão e pensa “qual foi o padeiro do bairro que mais ralou pra abrir sua padaria?”. O raciocínio é inverso: quem faz o melhor pão? Se o sujeito ralou anos para abrir a padaria, ou se herdou da família, pouco importa. As empresas, os clubes, as escolas, os bombeiros, cada qual pode ter lá seu critério de mérito e premiar quem desejarem. Na grande sociedade os critérios são abertos, difusos, dependem de infinitas decisões tomadas a todo momento pelas pessoas. Por razões que ninguém controla. Ainda bem. O que podemos fazer é discutir qual o modelo de justiça adequado às sociedades abertas. Arriscaria dizer que ele deve atender a dois critérios. Um vindo da grande tradição liberal; outro da grande tradição social-democrata. O primeiro diz que devemos assegurar a todos uma base de direitos iguais. Uma sociedade sem privilégios. Sem castas, regalias e favores do Estado.  A partir daí, respeitem-se as escolhas das pessoas.
Aqui vem o segundo critério: a oferta a cada um de uma base de da meritocracia oferece como exemplo o fato de que os mais ricos podem escolher as melhores escolas. Sandel inicia seu livro registrando que universidades como Yale e Princeton têm mais alunos entre o 1% mais rico do que entre os 60% mais pobres. Basta, porém, alguém propor que o governo ofereça bolsas para que os alunos mais pobres frequentem as escolas dos mais ricos (e nem estou falando dos  muito ricos) para o mundo cair. Já vi isso acontecer diversas vezes. “Não vai funcionar”. "É dinheiro para as escolas privadas”. De que jeito forjar um mundo de oportunidades iguais sem ao menos permitir que crianças pobres  estudem lado a lado e compartilhem do mesmo universo social daquelas com maior renda?  É só um exemplo. Nosso problema está longe de ser a “tirania do mérito”. O problema real é a ausência de uma base de direitos para que o mérito, isto é, as escolhas de cada um, possa fazer a diferença. Nesse sentido, tem razão Obama e sua emocionante visão da agência humana. É a tradição que busca o difícil equilíbrio entre liberdade individual e igualdade de direitos. Tradição que vem de Martin Luther King, quando disse sonhar com um mundo no qual seus filhos não fossem julgados pela cor da pele, mas pelo caráter. O mundo, no fundo, que vejo na fala desses nossos atletas, lá do outro lado do planeta, quando contam suas incríveis histórias. 

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA
Publicado em VEJA de 11 de agosto de 2021, edição nº 2750

domingo, 1 de agosto de 2021

Estudo inédito calcula o custo social da evasão escolar

 Estudo inédito calcula o custo social da evasão escolar

Estudo inédito, parceria entre Fundação Roberto Marinho e Insper, calcula o custo social que o país tem todo ano pelo fato de seus jovens não concluírem a educação básica: o custo da evasão de um jovem supera o PIB per capita de uma década.  No contexto da pandemia e na pós-pandemia, esse problema pode se agravar. O Brasil perde R$ 214 bilhões por ano pelo fato de os jovens não concluírem a educação básica. Essa é a conclusão do estudo “Consequências da Violação do Direito à Educação Básica”, parceria da Fundação Roberto Marinho com o Insper. O cálculo é inédito e aponta as consequências da evasão escolar e da falta de prioridade para a educação, ao mensurar o custo, em valores monetários, para o país e para cada 1 dos 575 mil jovens que não concluirão a educação básica. O custo da evasão de um jovem supera o PIB per capita de uma década. Mantido o ritmo atual, 17,5% dos jovens que hoje têm 16 anos não completarão a educação básica (pré-escola, fundamental e médio). A pesquisa, conduzida pelo economista Ricardo Paes de Barros, professor titular do Insper, mediu o custo social total de cada jovem sem educação básica em quatro dimensões:

empregabilidade e remuneração dos jovens;

efeitos que a remuneração dos jovem têm para a sociedade, que são chamadas externalidades;

longevidade com qualidade de vida;

violência.

Inicialmente, a pesquisa calculou quantos jovens não concluirão a educação básica, mantido o ritmo atual. Depois, quais seriam as consequências, em valores monetários, por jovem nas quatro dimensões. Por fim, estimou o custo total para o país da evasão escolar de jovens.  Resultados da pesquisa “Consequências da Violação do Direito à Educação” O resultado é que, anualmente, o país perde R$ 371 mil por jovem que não conclui a educação básica. Isso porque os jovens que têm a educação básica completa passam, em média, mais tempo de sua vida produtiva ocupados e em empregos formais, com maior remuneração; têm maior expectativa de vida com qualidade _ estima-se que cada jovem com educação básica viverá quatro anos de vida a mais que um jovem que não terminou a escolaridade_; e tendem a ter um menor envolvimento em atividades violentas, como homicídios _ o cálculo é que a evasão representa uma perda de 26% do valor da vida de um jovem.

Destaques gerais da pesquisa:

A evasão escolar de jovens corresponde a 3% do PIB anual e equivale a todo o gasto estadual e municipal com educação básica por ano.

575 mil jovens que têm hoje 16 anos não concluirão a educação básica, mantido o ritmo atual do aumento da escolaridade.

Por jovem, a perda é de R$ 371 mil por ano.

A perda total anual para o país é de R$ 214 bilhões, o que equivale a 3% do PIB anual.

A evasão escolar de jovens representa todo o gasto estadual e municipal com educação básica por ano.

O PIB per capita brasileiro é de R$ 32 mil, portanto, o custo da evasão de um jovem supera o PIB per capita de uma década.

O custo de oferecer toda a educação básica (pré-escola, fundamental e médio) é da ordem de R$ 90 mil por estudante. Assim, o custo da evasão por jovem supera 4 vezes o que custa garantir a sua educação básica.

A evasão representa uma perda de 26% do valor da vida de um jovem.

Os resultados da pesquisa “Consequências da Violação do Direito à Educação” e o impacto econômico e social da educação na sociedade serão debatidos em um webinário no próximo dia 14 de julho, das 16h às 18h, com participação do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, e mediação da jornalista Miriam Leitão. A apresentação será feita pelo economista Ricardo Paes de Barros, responsável técnico da pesquisa, seguida de debate com o secretário-geral da Fundação Roberto Marinho, Wilson Risolia, e o presidente do Insper, Marcos Lisboa. A transmissão será na página do Canal Futura no YouTube. “A pesquisa traz a resposta para uma pergunta objetiva: quanto custa não priorizar a educação? Esse indicador é um poderoso instrumento para o gestor público. A partir dele, o gestor pode reorganizar suas ações de forma a alocar os recursos de forma mais eficiente. Não reconhecer a educação como propulsora do desenvolvimento do país traz um gigantesco prejuízo monetário ao país. No contexto atual de forte restrição econômica, especialmente em virtude da pandemia, priorizar a educação, evitando a evasão escolar, é ainda mais importante”, diz Wilson Risolia, secretário-geral da Fundação Roberto Marinho. “Cada jovem que abandona a escola representa um custo muito elevado para a sociedade brasileira. Não é uma questão menor um jovem no século XXI não concluir a educação básica. É um problema gravíssimo que não afeta só uma minoria. Afeta 17,5% de todos os jovens de 16 anos desse país.”, diz Ricardo Paes de Barros, professor titular do Insper. Veja abaixo os destaques da pesquisa “Consequências da Violação do Direito à Educação” em cada segmento:

Contexto:

Magnitude do problema da educação brasileira: mantido o ritmo de melhoria da educação brasileira, 17,5% dos jovens que hoje têm 16 anos não concluirão a educação básica quando tiverem 25 anos. Portanto, a expectativa é que, a cada ano, o país tenha aproximadamente 575 mil jovens sem escolaridade básica. Vale ressaltar que 17,5% é uma média nacional, há estados em que a porcentagem de evasão escolar entre os jovens é ainda maior. Empregabilidade e remuneração dos jovens. Os jovens que não concluem a educação básica passarão 10% a menos de sua vida produtiva ocupados, e quando ocupados, passarão quase 20% a menos do seu tempo em empregos formais. Os jovens que não concluíram a educação básica recebem remunerações entre 20% e 25% inferiores ao que receberiam se tivessem concluído a educação básica. Um jovem que não concluiu a educação básica recebe ao longo do seu ciclo de vida R$159 mil (37%) a menos do que receberia caso tivesse concluído a educação básica. Efeitos que a remuneração dos jovens têm para a sociedade. Os benefícios para a economia de uma força de trabalho com maior escolaridade vão além daquilo que o próprio trabalhador se apropria por ter uma remuneração mais elevada. Beneficia a sociedade como um todo.

Cada jovem que não conclui a educação básica representa uma perda adicional de R$ 50 mil para a sociedade. A perda econômica adicional para a sociedade será de R$54 mil por jovem que não concluir a educação básica. Longevidade com qualidade de vida. Os jovens com educação básica têm maior expectativa de vida com qualidade. Um jovem com educação básica vive quatro anos a mais com qualidade do que aqueles sem educação básica. O valor monetário da perda por jovem que não concluir a educação básica será de R$ 114 mil.

Violência

Os jovens com educação básica tendem a ter menor envolvimento em atividades violentas, como homicídios. A cada ponto percentual de redução na evasão, seriam 550 homicídios a menos a cada ano. Uma morte que poderia ser evitada, caso o jovem concluísse a educação básica, custa R$ 25 bilhões por ano e, portanto, tem valor de R$ 44 mil por jovem que não conclui a educação básica. Os impactos da evasão escolar de jovens.A cada ano, o país perde R$ 371 mil por jovem que não conclui a educação básica. Isso significa uma perda total de cerca de R$ 213 bilhões por ano. O custo de oferecer toda a educação básica (pré-escola, fundamental e médio) é da ordem de R$ 90 mil por estudante. Assim, o custo da evasão por jovem supera 4 vezes o que custa garantir a sua educação básica. Representa um custo social que equivale a todo o gasto estadual e municipal com a provisão da educação básica. Um jovem que não concluiu a educação básica recebe ao longo do seu ciclo de vida R$ 159 mil (37%) a menos do que receberia caso tivesse concluído a educação básica. A perda econômica adicional para a sociedade será de R$ 54 mil por jovem que não concluir a educação básica. Um jovem com educação básica vive quatro anos a mais com qualidade do que aqueles sem educação básica. A perda por não ter educação básica é de R$ 114 mil por jovem. A evasão representa uma perda de 26% no valor da vida. A perda a ser evitada pela redução da violência seria de R$44 mil por jovem. A violência entre jovens custa R$25 bilhões por ano ao país. Mensagem para o gestor:  “Não deixem de educar seus jovens. Além de ser um direito garantido na constituição, ele traz um retorno gigantesco para o país”, diz Wilson Risolia, secretário-geral da Fundação Roberto Marinho.

 

Estamos sacrificando os jovens pela saúde de seus pais e avós

 Estamos sacrificando os jovens pela saúde de seus pais e avós, afirma filósofoFrancês André Comte-Sponville, que participa do Fronteiras do Pensamento, condena elevação da saúde a valor supremo 8.jul.2021 

 

SÃO PAULO Mais de um ano desde o início da pandemia, a saúde tem sido o assunto principal de nossos dias. Um dos grandes filósofos franceses contemporâneos, contudo, tem questionado a supervalorização da saúde em detrimento da liberdade. André Comte- Sponville, autor de, entre outros, “O Espírito do Ateísmo” e “Pequeno Tratado das Grandes Virtudes”, lançados pela WMF Martins Fontes, tem dito em entrevistas que a saúde se tornou tirânica e que estamos sacrificando a vida das gerações mais jovens pela saúde de seus pais e avós. “O que quero dizer é que a saúde não é o valor supremo. O amor, a justiça ou a liberdade são valores mais elevados. O lema da república francesa não é saúde, igualdade e fraternidade”, diz o filósofo em conversa por email. “Mais vale um indivíduo doente e cheio de amor que um desprezível cheio de ódio e saúde.” O filósofo, que dedicou sua carreira a questões da ética e ao estudo de nomes como Epicuro e Montaigne, é um dos entrevistados da Maratona Fronteiras neste sábado, que tem ainda Marina Abramovic e Andrew Solomon. O evento online é uma prévia do Fronteiras do Pensamento, que começa em agosto, e nele serão anunciados os conferencistas deste ano. Comte-Sponville havia dito em outubro a uma rádio que preferia ser contaminado pela Covid em uma democracia do que não ser contaminado em uma ditadura. “Eu disse ‘ser contaminado’ e não ‘morrer de Covid’. É verdade que é melhor viver numa ditadura do que morrer numa democracia, mas também se morre em ditaduras.” Ele diz que, na França, há a tendência de tomar a saúde dos mais velhos como prioridade, sacrificando os jovens, mas que os idosos são os mais vulneráveis apenas no que diz respeito à saúde. “Qual o maior dos riscos? Morrer jovem. Esse é um risco que não corro há tempos”, diz o filósofo, que tem 69 anos. Segundo os dados do serviço de saúde pública da França, até o fim de abril deste ano, 93% dos franceses mortos de Covid-19 tinham 65 anos ou mais. No Brasil, porém, de março do ano passado a abril deste ano, 73% dos mortos por Covid tinham 60 anos ou mais. Outros riscos, segundo ele, são o desemprego e o aquecimento global, duas ameaças aos jovens. “Não é normal que comprometam a vida dos mais jovens, seus estudos, suas carreiras profissionais, seu lazer, seus amores e sua liberdade para proteger a saúde de seus pais e avós." “A saúde é menos um valor do que um bem, desejável, é claro, mas que não pode passar por valor moral ou político”, diz, e acrescenta que não se pode contar com a medicina para dar sentido à vida. A reconciliação com a finitude da vida e buscar para ela um sentido, aliás, é um dos temas da obra de Comte-Sponville, para quem não há Deus. Para tal, diz ele, é preciso amar a vida como ela é, mortal e imperfeita, e não ficar sonhando com outra vida. “É aceitar a finitude e não temer a morte”, diz. “Costumo dizer que filosofar é pensar sua vida e viver seu pensamento. A filosofia serve para isso, para pensar melhor, para, então, viver melhor.” Ele costuma dizer e escrever que a filosofia tem o todo por objeto, a razão por meio e a sabedoria por objetivo. Mas não uma sabedoria que seja serenidade ou felicidade. “A sabedoria é o máximo possível de felicidade com o máximo de lucidez, e esses máximos variam em função dos indivíduos e das situações. Não se é sábio da mesma forma em Auschwitz e na Acrópole, ou em tempos de paz e em tempos de guerra, nem aos 20 anos e aos 60.” De seus 20 anos, o filósofo, que foi aluno de Louis Althusser, importante pensador marxista das ideologias, diz que abandonou a ideia de revolução. “Digamos que me tornei um socialdemocrata ou um liberal de esquerda”, diz. “Renunciei à ideia de revolução, mas não às de justiça social, liberdade e progresso.” O papel das esquerdas na atualidade é um dos assuntos que abordará na Maratona Fronteiras. Para ele, ser de esquerda hoje é se preocupar, primeiramente, com os interesses dos mais pobres e dos mais numerosos, e não com seu próprio interesse ou com a grandeza da nação. “É por isso que me reconciliei com o liberalismo econômico. É melhor ser pobre numa sociedade rica que ser pobre numa sociedade pobre”, diz Comte-Sponville. “A única maneira de diminuir a miséria é criar riqueza, e as sociedades liberais o conseguem fazer melhor que as outras.”

AS LIÇOES DE CHURCHILL

 Winston Churchill faleceu no dia 24 de janeiro de 1965. Este artigo é uma homenagem a este que foi a figura política de maior destaque no século 20. Liderança inquestionável nos turbulentos anos 40, Churchill foi o maior responsável individual pela derrota nacional-socialista na Segunda Guerra Mundial. Não é pouca coisa. De sua longa vida, podem-se tirar diversas lições importantes. Superação é uma das primeiras palavras que vêm à mente. A quantidade de adversidades e obstáculos que surgiram em seu caminho apenas fortalece o mérito de suas conquistas. Churchill não era de desistir, e usava cada tropeço para se reerguer com mais determinação ainda. Para ele, sucesso era a habilidade de sair de um fracasso para outro sem a perda do entusiasmo. Como todo ser humano, Churchill tinha suas falhas e contradições. Nem sempre foi correto, e errou em suas previsões em importantes situações. Mas todos estes defeitos servem para torná-lo mais humano, e não eclipsam de forma alguma seus tantos acertos, fundamentais para preservar a liberdade naqueles ameaçadores anos. Uma de suas maiores qualidades como estadista era seu realismo. Enquanto muitos preferiam o falso consolo de esperanças ingênuas, Churchill analisava os fatos com maior frieza. Como escreve Paul Johnson em sua biografia, “Churchill era realista o bastante para perceber que as guerras aconteceriam e, por mais terríveis que fossem, ele preferia vencê-las a perdê-las”. Ele sabia ser pragmático quando necessário, mas sua essência era basicamente a de um liberal, defensor da democracia e também do livre mercado.Sobre a democracia, aliás, Churchill tornou famosa a ideia de que se trata do pior modelo político, exceto todos os outros. Ele era realista o suficiente para não esperar escolhas democráticas fantásticas, e costumava dizer que o melhor argumento contra a democracia era uma conversa de cinco minutos com um eleitor médio. Esta postura cética é importante para limitar os estragos que podem ocorrer com o abuso de poder do governo, mesmo sob regimes democráticos. Nas grandes batalhas do século 20, tanto ideológicas quanto físicas, Churchill esteve do lado certo. Ele abominava os monstros aparentados: o comunismo, o nazismo e o fascismo. Considerava a tirania bolchevique a pior de todas. Chegou a afirmar que “o vício intrínseco do capitalismo é a partilha desigual do sucesso”, enquanto “o vício intrínseco do socialismo é a partilha equitativa do fracasso”. Ainda assim, soube fazer concessões práticas quando a própria sobrevivência dos valores ocidentais estava em jogo. Até mesmo com Stalin ele costurou um pacto para derrotar Hitler, após este trair o ditador soviético. Para Churchill, se Hitler invadisse o inferno até o diabo mereceria ao menos uma palavra favorável. Churchill havia lido “Mein Kampf” e, ao contrário de tantos que consideravam Hitler apenas um aventureiro iludido, ele acreditou em suas promessas. O “pacifismo” era o credo da moda, mas Churchill soube enxergar melhor a realidade. Isso fez com que a Inglaterra estivesse preparada quando o inevitável ataque nazista ocorreu. O papel de liderança exercido por Churchill neste momento de vida ou morte foi crucial para a vitória inglesa. “Nós nunca nos renderemos”, enfatizou em seu famoso discurso. Ele era a “personificação do entusiasmo”, como explica Johnson. Sua retórica não era, entretanto, vazia, e suas ações incansáveis colocavam em prática sua mensagem. Sua coragem na liderança da máquina de guerra inglesa comprovava sua fala. Sua confiança era contagiante, e sua determinação, inspiradora. Segundo o historiador Paul Johnson, seria legítimo dizer que Churchill realmente salvou a Inglaterra (e, portanto, o Ocidente).Além das medalhas militares, Churchill publicou quase 10 milhões de palavras em discursos e livros, pintou mais de 500 telas, construiu pessoalmente boa parte de sua propriedade particular, foi membro da Royal Society, foi agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura, foi exímio caçador e jogador de pólo, criou cavalos vencedores e consumiu espantosa quantidade de champanhe, em companhia de seus charutos. Era muito espirituoso, com incríveis tiradas dignas de uma mente rápida e sagaz.Para Paul Johnson, a vida de Churchill passa ao menos cinco lições importantes: pense sempre grande; nada substitui o trabalho árduo; nunca deixe que erros e desastres o abatam; não desperdice energia com coisas pequenas e mesquinhas; e, por fim, não deixe que o ódio o domine, anulando o espaço para a alegria na vida. Belas lições! Fonte: O Globo, 24/12/2012

sábado, 10 de julho de 2021

O país fora da curva - De Fernando Schüler

 No final, todos seu auto ajudam não tem direita, não tem esquerda, não tem nada.

De Fernando Schüler

O país fora da curva

Boa parte de nossos problemas é perfeitamente evidente, e é fácil saber o que deve ser feito. O problema é daí pra frente.

A conta não é difícil de fazer. Você pega o valor total que é gasto com o Congresso Nacional e divide pelo número de parlamentares. Depois pega esse valor e divide pela renda média do brasileiro. O resultado é 528. Isto é, cada parlamentar custa, arredondando, 25 milhões de reais por ano, valor equivalente a 528 vezes a renda média do país que ele representa. Somos, de longe, o país mais caro do mundo em termos de representação política. O segundo colocado é a Argentina, com menos da metade do valor. Da próxima vez que você der de cara com um deputado ou senador, cobre tudo o que achar que deva cobrar. Eles custam muito caro. Essas são algumas das conclusões a que chegou um estudo lançado esta semana, analisando dados de 33 grandes democracias ao redor do planeta, pelos pesquisadores Luciano de Castro, Odilon Câmara e Sebastião Oliveira. Uma das perguntas feitas por eles é sobre como chegamos a esta situação. É a pergunta que todos deveríamos nos fazer. No caso da proliferação de partidos, o país aprovou uma cláusula de barreira, nos idos de 1995, exigindo 5% da votação nacional para o funcionamento de um partido no Congresso. Em 2006 o Supremo decidiu derrubar a cláusula, sob o argumento de que aquilo seria um “massacre das minorias”. Nos anos seguintes, o número de partidos explodiu. Chegamos a trinta agremiações funcionando no Congresso. Onze anos depois, em 2017, conseguimos recriar uma nova cláusula, bem mais modesta, que em 2030 exigirá 3% da votação nacional para o partido funcionar no Congresso. Ainda não chegamos lá, mas já trabalha na Câmara uma comissão para rediscutir as regras eleitorais e, entre outros pontos, “repensar” a necessidade da cláusula de desempenho. No caso do financiamento aos partidos, é incrível alguém acreditar que a criação do chamado “fundão eleitoral”, que nas últimas eleições distribuiu 2 bilhões de reais aos partidos, tem como objetivo dar mais “equidade” à disputa eleitoral. Dos quase 4 bilhões de reais distribuídos nas últimas duas eleições, PT, MDB e PSDB zcaram com cerca de 30%. Só o PT embolsou mais de 400 milhões de reais, e até o PCO, que andou distribuindo sopapos na Avenida Paulista, na última passeata da oposição, faturou pouco mais de 2 milhões de reais. Em 2018, Geraldo Alckmin gastou perto de 50 milhões de reais na campanha; Bolsonaro, coisa de 2 milhões de reais. Boa parte dos recursos do fundão vai parar nas mãos dos políticos com mandato, deputados, prefeitos, que controlam as máquinas partidárias. Equidade é só uma palavra bonita, perfeita para alimentar o status quo e nosso gosto pelo autoengano. A verdade é que campanhas eleitorais se fazem cada vez mais através dos meios digitais, em regra mais baratos, e é bom que assim seja. Ainda me lembro das calçadas forradas de santinhos, no dia das eleições, e de cada poste da minha Porto Alegre entupido com placas de madeira e a “carinha” dos candidatos (como dizia a filha pequena de um bom amigo). As campanhas hoje não podem fazer isso. Por outro lado, há uma contínua expansão do uso de plataformas de financiamento coletivo. Será muito mais democrático se deixarmos que os cidadãos apoiem os partidos, via contribuições individuais, do que sacar dinheiro do bolso dos contribuintes. Alguém dirá que é difícil, que as pessoas não têm o hábito de doar, que é chato pedir dinheiro. De fato, é muito mais fácil aprovar, em uma tarde quente de Brasília, 2 ou 3 bilhões de reais para as campanhas. Se é esse o padrão que o país deseja seguir, paciência. Desconto que não seja. Diria que é apenas o padrão que nossa elite política criou, diante da passividade da sociedade. O que deveríamos fazer é migrar para o voto distrital misto, como muitas vezes já se discutiu. É muito mais barato fazer campanha em um distrito (São Paulo, por exemplo, teria 35) do que no Estado inteiro. Nosso sistema incentiva os deputados a formarem amplas redes de clientela, operando em centenas de municípios. Isso inclui a farta distribuição de emendas parlamentares e um vasto entourage de cabos eleitorais e estrutura para deslocamentos de região para região. No final, nem o eleitor sabe exatamente quem o representa, e o deputado a quem ele representa. Tudo com um certo jeito de jogo de faz de conta, ao qual já nos acostumamos. O ponto é que todo esse conjunto de distorções envolve um componente ético. Qual a autoridade de um Parlamento com o maior custo per capita do mundo para fazer uma reforma administrativa dura, que vai mexer no bolso de funcionários cujo vencimento médio (no Executivo) não chega a 1 000 reais? Isto é: menos da metade do que cada deputado dispõe apenas para despesas médicas. A reforma, por óbvio, precisa ser feita, mas o mal-estar permanece. A elite política deveria dar o exemplo. Cortar na própria carne. É isso o que o país deveria exigir. Da mesma forma, qual é a lógica de discutirmos aumento de impostos, como o governo faz agora com sua proposta de reforma tributária, enquanto continuamos a gastar o dinheiro do contribuinte de modo inteiramente irracional? Não seria mais lógico primeiro fazer uma reforma na máquina pública, dar um “choque de moralidade” e “economicidade” (como está escrito na Constituição), ao invés de apostar em mais receita tributária? Uma das vantagens que temos, quando discutimos o Brasil, é que boa parte de nossos problemas é perfeitamente evidente, e é fácil saber o que deve ser feito. O problema é daí pra frente. É sobre como lidar com um país cuja tragédia, na expressão do professor Barry Ames, “não é ter um sistema de poder que beneficie as elites”, mas que “beneficie fundamentalmente a ele mesmo”. Não penso que sair disso seja uma equação fácil, e talvez o tom de minha coluna hoje seja algo pessimista. Não foi a intenção. O sentido é apenas dizer que tratar as coisas com a crueza que elas têm, por vezes, é o melhor caminho para mudar e seguir em frente.

 De Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

domingo, 6 de junho de 2021

A república do privilégio - Fernando Schüler

 A república do privilégio - Fernando Schüler

Ainda lembro de uma visita que fiz ao Parlamento da Suécia. Fomos recebidos por uma deputada simpática que nos explicou sobre o sistema de votação, a composição dos partidos e mesmo as condições de trabalho ali. Lá pelas tantas perguntei: quantos assessores tem um deputado? Ela me olhou um tanto surpresa e respondeu: “Basicamente um, mas a assessoria é coletiva”. Saí de lá com muita informação interessante, mas aquele dado simples me bateu mais forte. Desde lá, sempre que vou a Brasília pergunto se alguém consegue explicar por que diabos cada deputado, aqui em Pindorama, tem direito a 25 assessores. No Senado vai a mais que o dobro disso. Fora as consultorias legislativas e os mais de 28 000 funcionários do

Congresso, que fazem do Parlamento brasileiro o segundo mais caro do planeta.

O país foi reduzindo suas expectativas com a qualidade da vida política, seja pela crença de que 'nenhuma democracia é perfeita', seja pelo simples cansaço Ninguém nunca explicou, porque no fundo não tem explicação. Do mesmo jeito que não tem a nota que li, tempos atrás, dando conta da “agilização” da liberação de até 135 000 reais ao ano em despesas de saúde para cada deputado. Exatos 11 200 reais por mês. Pra que tudo isso?, perguntei, dessa vez mais para dar uma provocada, e também fiquei sem resposta. O Estado brasileiro se tornou, ao longo do tempo, um exercício de apropriação. Há gente que não gosta de ler sobre essas coisas, mas é fato que temos um dos sistemas de Justiça mais caros do mundo, se não o mais caro, custando 1,8% do PIB, contra 0,33% na média europeia. Gastamos 13% do PIB com servidores públicos, mais do que países como Alemanha e Suécia, com um belfare state muito mais antigo e abrangente que o nosso, e muito acima da média latinoamericana. O governo federal paga 96% a mais a seus funcionários do que o setor privado em funções similares, segundo pesquisa da CNI. O Estado se torna, ele mesmo, um gerador de desigualdade, em um país já muito desigual. A cultura do privilégio vive em nossas entranhas. Ela vem do beija-mão, no Império, das liturgias da Casa-Grande, do mandonismo dos coronéis, na República Velha, e do que Sérgio Buarque, no clássico de 1936, definiu como a cordialidade, o traço personalista, avesso aos princípios abstratos e igualitários da boa tradição liberal, que o caráter de nosso mundo político. Um mundo de “constituições feitas para não serem cumpridas, as leis para serem violadas, tudo em proveito de indivíduos e oligarquias”. Depois que Sérgio Buarque publicou Raízes do Brasil, passamos por duas ditaduras que nos legaram um Estado gigante e intrometido, que nos custa a maior carga tributária do continente, e um modelo de “capitalismo de Estado” bem descrito por Sérgio Lazzarini e Aldo Musacchio. Sistema movido à base da “influência difusa do governo na economia, mediante participação acionária nas empresas, crédito subsidiado e privilégios a negócios privados”. E finalmente consagramos, na transição dos anos 1980, uma democracia de compadrio. Lenta para produzir reformas, mas vista por muitos como inclusiva, uma vez que soube incorporar, nesses anos, os extremos à esquerda e à direita. 

Ambos devidamente metabolizados pelo nosso tradicionalismo político, cuja melhor expressão é o eterno encontro marcado com o Centrão, suas adjacências, seus personagens de sempre e, mais importante, seu jeito de fazer política. Foi desse lado malandro de nossa democracia que tivemos notícia na discussão recente sobre o tal “Orçamento secreto” operado pelo governo e por parlamentares para a compra de tratores, equipamentos agrícolas e obras urbanas. O assunto perdeu de longe a atenção pública para os bate-bocas, bem mais divertidos, da CPI da Covid-19. Mas diz muito sobre nossa República. “Consagramos, na transição dos anos 1980, a democracia do compadrio” 

O caso é conhecido. Recursos do Orçamento, via emendas de relator, são transferidos pelo governo para prefeituras a partir da indicação de parlamentares, em regras governistas. É uma forma de driblar a norma de execução obrigatória de emendas parlamentares, feita para evitar que o governo escolha a dedo a quem favorecer. O truque também fere o princípio da impessoalidade, gravado na Constituição. Fere, por fim, determinação legal para que os recursos sejam gastos com ampla publicidade e atendendo a indicadores socioeconômicos.

Quando tratei do assunto, nesta semana, um interlocutor deu de ombros: politics as usual. De fato, é. E não vamos além da rinha de galo política se acreditarmos que isso só passou a acontecer agora, no 132º ano da República. De fato é apenas mais um tijolo, junto com as regalias públicas e favores privados, do grande edifício barroco que é nosso patrimonialismo político. E é precisamente no fato de que estamos diante da regra, e não da exceção, que mora o problema: tornamos corriqueiro, e mesmo aceitável, o que não passa de um conjunto de anomalias republicanas.

Há um movimento adaptativo aí. O país foi reduzindo suas expectativas com a qualidade da vida política, seja pela crença de que “nenhuma democracia é perfeita”, como li num artigo, seja pelo simples cansaço. Não nos incomodamos mais com essas coisas triviais. Com a regra constitucional limitando os vencimentos do funcionalismo, por exemplo, à remuneração dos ministros do STF, hoje em 39 200 reais. Regra de faz de conta, lei para não cumprir, seja pelos generais 

Qualquer exemplo aqui é precário. O ponto é a aceitação tácita do sistema de privilégio, do modelo patrimonial, e a timidez de nosso espírito de reforma. Ainda me lembro quando Mario Covas, na campanha de 1989, disse que o Brasil precisava de um choque de capitalismo. Ele era um homem de esquerda que percebeu essas coisas nos inícios de nossa redemocratização. Seu choque de capitalismo dizia respeito à migração do modelo patrimonial para uma economia aberta, um Estado enxuto e pautado pelos princípios impessoais e igualitários da tradição liberal-democrática. Preceitos  que sempre pareceram fora de lugar por estes trópicos.

Ainda nos encontramos, três décadas depois, à espera do choque que não veio. Desiludidos com a ideia do líder providencial que vai repaginar o “sistema”, procrastinando uma reforma administrativa muito tímida, no Congresso, e nos distraindo com a gritaria política. Como diz Gustavo Franco, no livro que lança por estes dias, “o problema é verificar, anos depois, que a apatia simplesmente não funciona”. 

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Os textos dos colunistas não re{etem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 26 de maio de 2021, edição nº 2739


quarta-feira, 26 de maio de 2021

O lugar do imperador Adriano e o Complexo, de Rodrigo Bertamé

 O LUGAR DO IMPERADOR: Adriano e o Complexo

As recentes declarações do Jogador Adriano nos faz pensar sobre um dos principais conceitos da arquitetura e da vida: O lugar.

Quando o jogador de milhões, no auge da sua carreira retorna ao Brasil e, principalmente, ao seu bairro, sua favela ou seu complexo como queiram chamar, o jogador vira alvo de uma campanha alvoroçada e constante. Não era raro ver as mídias associarem o retorno do jogador a uma decadência moral do tipo, está cercado de bandidos, associou-se ao tráfico, etc. Discurso este que caia no senso comum, Adriano era visto como aquele que teve todas as oportunidades e jogou fora.

A real é: o que o sistema realmente não tolerou foi a quebra do modelo de sucesso que ele vende. O retorno de um jogador, um artista um ídolo ao seu lugar de origem se torna perigoso a medida em que o discurso oficial precisa convencer que o seu lugar é "errado". O que se espera de um jogador pobre que sai da favela ainda jovem e vai viver na Europa? Espera-se qualquer coisa, menos que ele retorne ao seu lugar pobre.

A escolha de Adriano é impensável para um sistema que alimenta diuturnamente que a favela é um território que não deveria existir, ou que é território onde todos são potenciais bandidos, onde todos são passíveis de seu chacinados. Importante entender: O que espanta a sociedade não é o alcoolismo puro e simples, mas o fato de o jogador beber no seu lugar. Para assinalamos mais um elemento, a degradação do sentido de lugar é importante para a manutenção da ausência de políticas públicas. Nós lutamos pelo que nos afeta. Aceitamos condições mais precárias pois criamos o hábito de que o nosso lugar não deveria existir ou ser melhor.

Este hábito construído em um cotidiano cheio de significação ajuda por exemplo a definir o valor da terra ou também a diferenciar o lugar do rico do lugar do pobre. O que se espera de um jovem pobre latino-americano ou africano que tenta a sorte no futebol e vence na vida? Se estabelecer em um lugar de rico ou classe média alta que seja. Da mesma forma, não se espera um processo de ruptura onde valor de uso se torne mais importante que o valor de troca.

Imagine como ficaria difícil para o estado dar tiro a esmo correndo o risco de matar um Adriano? O que incomoda no Adriano, também incomoda no baile da gaiola, ambos expõem que o mundo real é maior do que a propaganda e que o Complexo é um lugar de pertencimento como qualquer outro, e deveria ter o mesmo tratamento social, econômico, espacial que qualquer outro canto. Incomoda que a pessoa que alcançou fama e fortuna e com isso a liberdade de escolher onde quer ir e vir no mundo capitalista escolhe estar de volta no seu bairro. Ofende um sistema classista e racista quando estas coisas acontecem,

O que o jogador fez foi o básico do que faz a humanidade. Em momentos de depressão e falta de sentido pra si, busca sua base de apoio, seu espaço afetivo, seu território de pertencimento, isto é, busca o seu lugar. E neste momento, o Complexo se torna melhor que Milão, e isso não é problema nenhum. Falar do Lugar é falar disso.

Adriano vence na vida quando decide buscar sua essência (palavra dele) e o seu lugar que definitivamente não é Milão.

O mais interessante do conceito de lugar é isso, não precisamos buscar em literaturas, teorias científicas o seu entendimento, basta a gente olhar para o que nos afeta, pra estes espaços com o qual temos carinho e felicidade. Este é nosso lugar. 


quarta-feira, 19 de maio de 2021

A dupla moral brasileira, de Fernando Schüler

 A dupla moral brasileira, de Fernando Schüler

A glamourização do crime e da favela correm em linhas paralelas no Brasil: elogiamos algo que só topamos a uma distância segura “Seja marginal, seja herói”, dizia a frase de Hélio Oiticica na obra em homenagem ao Cara de Cavalo, bandido da Favela do Esqueleto, morto pela polícia em 1964. Affonso Romano de Sant’Anna conta que viu a obra, numa exposição no MAM, no dia da morte de Tim Lopes, pelo tráfico, e não pode evitar a sensação de que havia uma coisa errada naquilo tudo.

A glamorização do crime e da favela correm em linhas paralelas no Brasil. Ainda me lembro do clipe do Michael Jackson no Morro Dona Marta, no Rio de Janeiro, nos anos 90. Cobertura no Jornal Nacional, um secreto orgulho de mostrar a “nossa favela” para o mundo. Lembro, anos depois, da ideia genial dos roteiros turísticos na favela. Em meio a um mundo cada vez mais padronizado, a favela surgia como fonte de exotismo e estranhamento. O pitoresco, o casebre, a criança quase nua, solta na ruela, o samba meio ensaiado, aqui e ali. Lembrei dessas coisas quando tentava entender o massacre do Jacarezinho. Eu deparei com o depoimento de alguns anos atrás do André Constantine, morador da Babilônia, do movimento Favela Não Se Cala. “Aqui na Babilônia tem três cemitérios clandestinos”, disse ele. “Como é que eu vou romantizar um território em que minha filha não tem chance de crescer intelectualmente por causa dos confrontos?” É preciso desconstruir essa romantização por parte dos intelectuais e dos acadêmicos.

A glamorização é um tipo de dupla moral: elogiamos algo que só topamos a uma distância segura. Achamos legal, mas para os outros. Isso me faz lembrar do dualismo da “ética da casa e da rua”, de Roberto DaMatta, só que no plano da retórica: para os outros acho um charme aquele colorido todo da “comunidade”, aquela vibração “única”, como li num texto delirante. Mas não para mim, nem para os meus. Aqui em casa prefiro a ordem e o silêncio. Polícia na rua, lixo recolhido na hora certa, guarda na portaria e tudo funcionando direitinho. O dualismo retórico é um traço da nossa cultura pública. Quando o tema é saúde, não conheço político que não encha a boca para elogiar nosso “sistema público de saúde”. Na pandemia, a coisa virou moda também na internet. O cara se emociona lá elogiando o modelo estatal, mas no terceiro espirro vai na emergência particular. O discurso público é um, a verdade da vida privada é outra.

Pesquisa global da Ipsos, em 2018, questionou a avaliação sobre a “qualidade do atendimento” de saúde a que as pessoas têm acesso, em cada país. O Brasil ficou em último lugar entre as nações pesquisadas, com avaliação negativa por parte de 57% dos usuários. É a mesma posição quando se pergunta sobre a facilidade de marcar uma consulta médica. É um curioso paradoxo. A retórica pública diz que “sistema público” é ótimo, mas a avaliação real dos usuários aponta precisamente na direção contrária. Durante a pandemia, o Projeto UTIs Brasileiras divulgou uma pesquisa incômoda mostrando que a mortalidade nas UTIs estatais era de 52,9%, ante 29,7% nas privadas. É evidente que existem fatores sociais e econômicos que afetam essa realidade, e esse é exatamente o problema. Pessoas mais pobres deveriam ter acesso às mesmas condições de atendimento, com rapidez, sem filas, que têm a classe média e os mais ricos. Ou não?

Um levantamento do Conselho Federal de Medicina mostrou que 45% dos pacientes estão esperando uma consulta há mais de seis meses, e 29% estão há mais de um ano na fila. Não passa de uma fina e macabra ironia responsabilizar a “condição social” das pessoas por sua própria taxa de mortalidade nas UTIs do setor público. E não é difícil de entender por que ter um plano de saúde é o sonho de 73% dos brasileiros, o terceiro maior, segundo o Ibope, à frente do automóvel e logo atrás da casa própria.

A verdade é que todos sabemos que o sistema é estruturalmente falho, mas vamos levando. Apostamos no dualismo moral: elogio fácil do sistema estatal, de um lado, e a proteção no mercado privado (para quem pode), do outro. Muitos dirão que não há problema nisso, que é apenas a marca de um país desigual, que é perigoso desagradar as corporações públicas. E que as coisas estão melhorando, devagar, e que é preciso ter paciência. Discordo. Há um problema, sim, e ele não está no fato de que as pessoas tenham bons planos de saúde e façam o melhor por suas famílias. O ponto é nosso ar blasé quando se trata da vida de quem sofre abuso sexual na favela ou espera há 676 dias por uma cirurgia para obesidade mórbida, pelo SUS, em uma capital brasileira, como li tempos atrás.

Essa atitude vem do fundo da tradição brasileira. Da aceitação passiva de um tipo de subcidadania, tão presente na ideia de que “a saúde é ruim, mas é melhor que nada”, ou “a escola não funciona, mas ao menos tem onde deixar as crianças”. No fundo é a longa memória de um país que aprendeu a esperar muito pouco de si mesmo. Dizemos abominar nossa desigualdade, mas nos habituamos a ela. É um pouco do que ocorreu com a pregação do isolamento social na pandemia. Muita gente surpresa com as estações lotadas, cedo de manhã, mas uma arara se o porteiro chega atrasado ao serviço. Vem do fundo de nossa história, mas não significa que seja um destino.

Digo isso porque há muita coisa mudando no Brasil. Na saúde, por exemplo, é só dar uma olhada em uma experiência como a do hospital regional de Jundiaí, no interior de São Paulo, gerenciado pelo Instituto Sírio-Libanês, ou a do Hospital Municipal Dr. Moysés Deutsch, em São Paulo, gerido em parceria com o Albert Einstein, ou ainda a do Hospital do Subúrbio, em Salvador, premiado internacionalmente e gerenciado por meio de uma PPP. O ponto básico dessas iniciativas: rompe-se com a inércia. O Estado reposiciona o seu papel, se põe como regulador e delega a gestão ao setor privado. E com isso quebra o apartheid. Permite aos cidadãos, com maior ou menor renda, o acesso à mesma qualidade, ou ao menos a uma qualidade similar de serviços.

Não acho que tudo isso seja muito difícil de aprender ou de fazer. O ponto é que não se trata apenas de uma questão de técnicas de gestão. Esse, o fundo, é o menor dos problemas. A questão é romper com o substrato cultural que mantém boa parte do país na inércia e que ainda faz jus ao “assim é porque sempre foi”, na frase lapidar de Raymundo Faoro definindo nosso tradicionalismo político. O problema ainda está na nossa cabeça, e é por aí que precisamos começar a mudar.


Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 19 de maio de 2021, edição nº 2738

segunda-feira, 17 de maio de 2021

PRECISAMOS FALAR DA IMUNIDADE TRIBUTÁRIA DE IGREJAS EVANGÉLICAS - DE LEONARDO SIQUEIRA

 PRECISAMOS FALAR DA IMUNIDADE TRIBUTÁRIA DE IGREJAS EVANGÉLICAS.

Para os fanáticos que pensam binariamente e vão problematizar, NÃO É SOBRE FÉ OU RELIGIÃO, é sobre economia.
É sobre como a imunidade banca o enriquecimento de poucos às custas de muitos e deixa o BRASIL +INJUSTO. No Brasil, as igrejas e centros religiosos estão entre as instituições às quais a Constituição garante imunidade tributária.
Isso significa que nem União, nem estados e municípios podem cobrar deles qualquer tributo que tenha incidência sobre o patrimônio ou renda
Sendo mais específico, Igrejas e centros religiosos de qualquer natureza NÃO pagam IPTU, IPVA e Imposto de Renda.
Qual a justificativa?
Uma delas é que a imunidade existe para proteger a liberdade religiosa e permitir que todos os grupos de pessoas possam exercer sua fé. Uma vez vendo o Silas Malafaia falar o porquê da imunidade tributária, que com sua retórica, QUASE me convenceu. Disse que a Igreja tira muitas pessoas do vício, da depressão e do mau caminho.
Eu CONCORDO MUITO. De fato a igreja cumpre esse papel para muitos aos dar esperança. Mas se a lógica for não tributar os bem intencionados, HOSPITAIS também teriam que ter isenção tributária, pois cuidam da nossa saúde. Psicólogos que cuidam da nossa saúde mental, IDEM!
Farmacêuticas também, pois fabricam nossos remédios. E os alcoólicos anônimos? Etc, etc... "Ah, mas essas empresas tem fins lucrativos".
Sim, aliás, esse é UM DOS PROBLEMAS dessa imunidade tributária. O benefício faz vista grossa para o enriquecimento de empresas disfarçadas de igrejas.
Em 2013, a Forbes fez uma lista dos líderes evangélicos mais ricos do Brasil--Basta ver a lista que claro foi questionada por eles.
1. Edir Macedo (Igreja Universal): R$ 2 bilhões
2. Valdemiro Santiago (Igreja Mundial): RS$ 420 MM
3. Silas Malafaia (Assembléia de Deus): RS$ 400 MM
4. R. R. Soares - R$ 125 MM
5. Estevam e Sônia Hernandes - R$ 120 MM Mas não para por aí...
Em setembro de 2020, foi aprovada pelo congresso um projeto para ELIMINAR uma dívida de R$ 1,4 bilhão das igrejas.
O Autor do projeto? David Soares (DEM-SP), filho do Missionário R.R. Soares. Que coincidência, não? Daí alguns podem dizer "pô, você gosta mesmo de imposto, hein? Deixa eles terem isenção."
Justamente por querer um sistema mais justo que falo isso. Se você libera alguns, outros precisam pagar mais. Em geral, os pobres.
Para cada isenção, alguém está pagando essa meia entrada. Mas não para por aí.
Um paper do Rafael Corbi da USP e Fábio Miessi do Insper mostra que a imunidade tributária contribui para multiplicação de igrejas evangélicas.
Sem isenção, três quartos dos templos inexistiriam, encolhendo bancada na Câmara.O modelo teórico utilizado indica que:
- Se as pentecostais tivessem sido taxadas a partir de 1992 em 34%, alíquota média imposta a empresas, a quantidade de templos verificada no país em 2018 seria 74% menor.
- A redução de templos implicariam a queda de 13% a 27%.

E por que quase nenhum político toca nesse assunto? Porque muitos não querem se indispor.
Mas, para mim, não é sobre religião! Que me conhece sabe que frequento igrejas.
É sobre tonar o Brasil mais justo sem imunidade para alguns enriquecerem enquanto os pobres pagam isso. 

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quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Livros

Ensaios de Warren Buffett, Editora Rui Tabakov Sena Rebouças

Freakonomics, de Stephen J. Dubner e Steven D. Levitt

O mito do governo grátis, de Paulo Rabello de Castro

Complacência, de Fabio Giambiagi e Alexandre Schwartsman

Punidos pelas Recompensas, de Alfie Kohn

Endgame, de John Mauldin

Economia sem truques, de Carlos Eduardo Gonçalves

Manias, Pânico e Crises, de Charles Kindleberger

Depois da Tempestade, de Ricardo Amorim

segunda-feira, 27 de julho de 2020

Novo Fundeb amplia velhos problemas - MARCOS LISBOA

Desde os anos 1950, a pesquisa aplicada aponta a relevância da educação para a geração de renda e para a qualidade de vida. No Brasil, adultos que completaram o ensino médio ganham 20% a mais e ficam menos tempo desempregados ou na informalidade.
Os efeitos da educação transbordam a economia, como sistematiza trabalho coordenado por Paes de Barros.
Demoramos, no entanto, a reconhecer a sua importância, e não foi por falta de evidência. Em 1970, Langoni documentou que expandir a educação básica era mais rentável do que apoiar qualquer setor da economia.
Pouco depois, ele realizou uma pesquisa tecnicamente impressionante revelando como o pouco acesso à educação era o principal responsável pela nossa desigualdade de renda.
Foi de pouca valia. À época, intelectuais descartaram a evidência, e só nos anos 1990 o país começou a ampliar significativamente os gastos com educação.
Houve avanços expressivos no ensino fundamental 1, porém modestos no fundamental 2. Os resultados de aprendizado dos adolescentes não melhoraram e estão bem abaixo do esperado nas comparações internacionais.
O fracasso não é por acaso. Nossa política educacional ainda ignora a pesquisa minuciosa sobre os fatores associados à melhora do aprendizado.
A evidência indica a relevância da gestão em cada escola, com avaliações detalhadas de aprendizado, monitoramento dos docentes e metas de desempenho. Testes randomizados mostram que oferecer longo treinamento de técnicas adequadas de gerenciamento para diretores de escola aumenta o aprendizado dos alunos.
Particularmente importantes são as políticas de formação e valorização dos bons professores. Por outro lado, docentes com pouco engajamento deveriam ser afastados.
No Brasil, porém, grupos organizados costumam defender apenas o aumento dos gastos com educação, sobretudo de salários, apesar do seu frustrante impacto sobre o aprendizado.
Delibera-se sobre a política educacional com base em opiniões, sem considerar as evidências com controles adequados, muitas obtidas em experimentos aleatorizados.
A proposta do novo Fundeb amplia e constitucionaliza velhos problemas, analisados por Oliveira (2019, volumes 1 e 2) e Hirata, Melo e Oliveira (2000).
Melhor prorrogar a regra atual por algum tempo para avaliar e propor, com base na evidência, uma reforma voltada para o aprendizado. Temos exemplos de cidades pobres que zelam pela gestão do ensino e conseguem resultados surpreendentes, bem melhores do que regiões ricas.
Aprender com as boas práticas e cuidar dos alunos, contudo, parece fora da agenda da educação.

Marcos Lisboa
Presidente do Insper, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005) e doutor em economia.

Os sonhos da Fadinha

Os sonhos da Fadinha O problema real do Brasil não é a "tirania do mérito", mas a ausência de uma base de direitos para que o méri...